ATRAVESSANDO O DESERTO DA PERDA 1 - MORTE

INTRODUÇÃO

Por ter sofrido muitas perdas ao longos dos anos, o tema não só me é próximo, como inevitável. Todo o ser humano é privado de algo, em dada altura da vida, e sofre o prejuízo de sonhos despedaçados, dor agravada, futuros extintos e, o sufocante pânico do desânimo, perplexidade e desorientação. É tão certo como a morte e não há forma de contornar a perda, apenas atravessá-la. A perda não tem de ser, contudo, unicamente funesta, pode até despertar rumos aperfeiçoados e milagres não esperados. 

Os casos apresentados neste trabalho são reais, mas para proteção da privacidade dos protagonistas, dei-lhes pseudónimos. As histórias escolhidas, tentam analisar as perdas mais comuns a todos nós e, como os seus intervenientes as vivenciaram e aprenderam delas.

1. A Perda da Morte

"Passa-se um dia e outro dia
À espera que passe a Dor,
E a Dor não passa, e porfia,
Porque trás dia, outro dia
Que traz Dor inda maior;
Porque embora a Dor aflita
Calasse há muito seus ais,
Ainda, fundo, palpita
Uma outra Dor que não grita:
A Dor do que não dói mais."
Francisco Bugalho, in Dispersos e Inéditos [1]

Caso 1 – Perda de Pais

Maria perdeu o seu pai aos 13 anos de idade. Até então tinha um lar seguro, com progenitores amáveis, dedicados e felizes. Repentinamente o seu herói tinha desaparecido e os alicerces da sua vida ruíram. Ficou três anos sem voltar à escola, tornou-se uma adolescente triste e áspera e, nos 15 anos seguintes, chorou quase todos os dias, presa num cárcere emocional. Para ajudar a mãe a alimentar quatro filhos, trabalhava em casa e para fora, descobrindo os espinhos terríveis da vida. O exemplo lutador da mãe e o seu apoio incondicional, permitiram, contudo, que a vida fosse passando.
Finalmente, decidiu emigrar, mas a situação agravou-se, caindo em intensa depressão. A sua alma ficou profundamente marcada pela dor e sofrimento.
Foi nesse outro país, que conheceu Deus como um Pai que jamais a abandonaria. Reconheceu que procurava um culpado e que vivia como se fosse a única pessoa em sofrimento na Terra. A cura iniciou-se com uma mudança de atitude e hoje aconselha a todos os que passam pelo luto, a não se agarrarem eternamente à dor: tudo na vida, afinal, é uma questão de decisão. Hoje vive liberta da autopiedade e afirma: “Deus tem poder para curar, se nós quisermos verdadeiramente ser libertos e cooperarmos com Ele para limpar todas as feridas.”

Do leque de sentimentos comuns no luto, a tristeza, a raiva, a ansiedade e a solidão são os mais frequentes. Sensações físicas de fraqueza e hipersensibilidade são expetáveis, assim como pensamentos de confusão e preocupação, comportamentos de distúrbios de sono ou apetite, e isolamento, choro ou distração.
A morte coloca um desafio de adaptação e aceitação da perda, para que se possa fazer um processo de luto saudável, mas por vezes mortes traumáticas podem nunca ser completamente resolvidas. Num luto complicado em que haja negação do processo, podem ocorrer distúrbios difíceis de ultrapassar.

Caso 2 – Perda de Cônjugues

O Dr. James Dobson, no seu livro “Quando Deus não Faz Sentido”, reflete que, num mundo imperfeito, temos de aceitar que nem sempre entenderemos todas as circunstâncias inexplicáveis desta existência e que, o maior teste à fé, é a ausência de um propósito numa tragédia. Apesar de tudo, no fogo da provação, Deus nos guiará para cultivarmos a total dependência Dele.
“As escrituras nos dizem claramente, que nos falta a capacidade para entender a inteligência infinita de Deus, ou a maneira como Ele intervém na nossa vida. (…) só teremos o quadro total quando nos encontrarmos na eternidade. [2]
Ainda assim, é possível, conviver com a perda. William Worden, descreve 4 tarefas para enfrentar o processo de luto:
1. Aceitar a Realidade da Perda
“A primeira tarefa do processo de luto é enfrentar a realidade de que a pessoa está morta, de que a pessoa se foi e não irá retornar.” [3]
2. Elaborar a Dor da Perda
"Se é necessário para a pessoa enlutada passar pela dor do luto para que este se resolva, então pode-se esperar que qualquer coisa que continuamente permita que a pessoa evite ou suprima esta dor vá prolongar o tempo de luto" (Parkes, 1972, p. 173).” [4]
3. Ajustar-se a um Ambiente Onde Falta a Pessoa que Faleceu
“(…) a pessoa enlutada tem que se ajustar à perda de papéis anteriormente desempenhados pelo falecido, mas a morte também os confronta com os desafios de se ajustar ao seu próprio sentido de self.” [5]
4. Reposicionar em Termos Emocionais a Pessoa que Faleceu e Continuar a Vida
“[É essencial] ajudar o enlutado (…) a encontrar um local adequado para o falecido em sua vida emocional - um local que irá capacitá-lo a continuar a viver bem no mundo.” [6]

Nem sempre estas tarefas conseguem ser concluídas por aqueles que passam por uma perda pungente. Há casos em que o luto nunca finda.
Acredito que é nosso dever tentar ajudar, no que nos for possível, aqueles que passam por perdas, quer seja por estarmos presentes, por simplesmente os ouvirmos, ou por ajudarmos nas tarefas e providenciarmos algum sistema de suporte.
Independentemente da duração do luto (pois não se pode pôr um prazo no processo), haverá sempre uma tristeza inerente à lembrança da pessoa amada. É possível, ainda assim, chegar a um lugar, em que se consegue recordar o falecido, sem dor. Esse é o momento em que o luto está concluído: há a aceitação da perda, mas também da importância incomparável e única que a pessoa teve na nossa história.

Caso 3 – Perda de Filhos

Depois de um relacionamento frustrado, e a dor de um divórcio, Júlia reconstruiu a sua vida, recebeu Jesus como Senhor e salvador, casou-se novamente, começando uma nova família e também o desejo de ter outro filho. Já nos 40 anos, aconteceu a gravidez. Houve muita alegria e gratidão a Deus. No entanto, em poucas semanas, sentiu um sangramento e o pior aconteceu: um aborto retido. Durante 10 dias, enfrentou idas e vindas ao hospital, medicamentos e, por fim, uma raspagem. Começou o processo de recuperação emocional e física. Sem família no país, a solidão e tristeza foram inevitáveis e, apesar de ser uma pessoa extremamente ativa na obra de Deus, viu-se sozinha diante de toda esta situação, com o seu esposo, o qual também não teve nenhum apoio.

O aborto espontâneo interrompe todas as fantasias, esperanças e expectativas que a gravidez acalentava. O aborto é a rutura de todo um universo, é duro, angustiante. Segue-se a vergonha, a insegurança e o sentimento de inferioridade. Walsh e McGoldrick, conforme cit. por Rita Melo [7] afirmam:
"A perda é um poderoso evento nodal que abana a fundação da vida da família e deixa todos os membros afetados (...) [ela] modifica a estrutura familiar, requerendo normalmente uma grande reorganização do sistema familiar. O significado de uma determinada perda e respostas a ela são moldados essencialmente pelo sistema de crenças da família, o qual, por sua vez, é modificado por todas as experiências de perda."
Pais enlutados, têm a difícil tarefa de relembrar os seus filhos e encontrar um meio de voltar a reinvestir na vida. Se houver um apego não saudável ao passado, isso comprometerá as relações presentes e futuras. A pessoa fica presa no momento da perda e não consegue continuar, por isso muitos casamentos ruem quando ocorre a perda inesperada de um filho.
Freud refletiu sobre a perda de um filho de um seu amigo:
“Encontramos um lugar para o que nos perdemos. Embora saibamos que depois dessa perda a fase aguda do luto irá serenar, também sabemos que podemos ficar inconsoláveis e nunca iremos encontrar um substituto. Não importa o que preencha o vazio, mesmo que ele seja preenchido totalmente, todavia permanece alguma coisa a mais. (E. L. Freud, 1961, p. 386).” [8]

Caso 4 – Perda de Animais Domésticos

Beagle era um Welsh Springer Spaniel de um ano, recolhido às portas de um shopping, numa noite fria de Natal. Viveu uma longa vida de 17 anos, amado intensamente pela sua dona, com a qual compartilhou experiências de alegria, amor, morte, pobreza, doença, abandono e depressão. A expressão “só lhe faltava falar” não lhe fazia justiça – a inteligência, empatia e companheirismo deste animal tornava-o insubstituível. Quando o marido de Cristina os abandonou, Beagle e a dona passaram por um longo processo de terapia juntos – sim, os cães têm emoções e também ficam revoltados e deprimidos. O amor um pelo outro, ajudou-os a curarem as feridas e nos últimos anos, a sua relação era mais íntima do que nunca, bastando um olhar para tudo expressarem. A idade foi chegando e o estado de saúde do Beagle agravou-se, a ponto de já não conseguir comer nem beber. Passaram as últimas horas a ouvir louvores instrumentais em piano, que ele tanto gostava, e por fim despediram-se com o olhar, de mãos dadas.

O luto por um animal doméstico é frequentemente desconsiderado e a dor daqueles que passam por esta perda desvalorizada:
“A sociedade pode não se sentir confortável com os sentimentos da pessoa enlutada e pode dar a sutil mensagem: "Você não precisa ficar de luto, você está apenas com pena de si mesmo". Isto interfere com as próprias defesas da pessoa de luto, levando à negação da necessidade do luto (…)” [9]
Muitos têm como companhia, apenas os animais, vivendo isolados por situações de abandono, carência, doença ou outras. Diversos campos da investigação científica já provaram que os animais domésticos fazem bem à saúde física e promovem a paz e a sociabilização entre os humanos. Milhares de anos de domesticação, tornaram os pets em criaturas empáticas e retribuidoras, por vezes, muito mais que os humanos e, as lições que aprendemos com eles, são valiosas.
“Antes de ter amado um animal, parte da nossa alma permanece desacordada.” Anatole France
Apegamo-nos pela necessidade intrínseca de estabelecer laços afetivos. A natureza social da criação, sugere que tanto humanos como animais, carecem de comunhão e experimentam o luto com desespero semelhante. A perda faz parte da vida e, só perdemos, quando amamos.
“A teoria do apego de Bowlby nos fornece um meio de definir a tendência dos seres humanos de estabelecer fortes laços afetivos com outros, e uma forma de compreender a forte reação emocional que ocorre quando estes laços ficam ameaçados ou são rompidos. (…). Citando o trabalho de Lorenz com animais e o de Harlow com filhotes de macacas, Bowlby aponta para o fato de que o apego ocorre na ausência de reforço destas necessidades biogénicas (Bowlby, 1977).
A tese de Bowlby e de que tais laços surgem de uma necessidade de segurança e proteção; eles iniciam cedo na vida, (…) e tendem a durar por uma grande parte do ciclo vital." [10]

Como superar a Perda da Morte?

A morte é uma perda definitiva e incontornável. Seja superada em quatro (Bromberg [11]) ou cinco fases (Kubler-Ross [12]), o Luto é a resposta a um evento difícil, que engloba não só a perda do objeto valorizado, como as ramificações que esse dano tem no nosso quotidiano.
“Depois que alguém passa por uma perda, há certas tarefas do luto que devem ser realizadas para que seja restabelecido o equilíbrio e para que seja completado o processo de luto. (…). Tarefas de luto não concluídas podem prejudicar o crescimento e o desenvolvimento futuros.” [13]
A perda impõe um período de transição que engloba a revisão da conceção do mundo, do “eu”, dos papéis dos intervenientes na experiência e das soluções para uma nova realidade. Um luto será sempre individual, no seu ritmo e expressão. Este processo de adaptação é tanto visto nos humanos, como nos animais [14] portanto é universal, biológico, inter-cultural e inter-espécies.
“Chegar à aceitação da realidade da perda leva tempo, já que envolve não só a aceitação intelectual, mas também a emocional. A pessoa enlutada pode estar intelectualmente consciente da finalidade da perda muito antes que as emoções permitam total aceitação da informação como verdadeira.” [15]
Após a tomada de consciência da perda, ocorrem um leque de vivências que tentam dar sentido ao vazio. O processamento da morte tem muito a ver com o contexto em que ela ocorre, a sua natureza, a altura no ciclo de vida e a importância do indivíduo no nosso universo. Poderão existir inclusive mortes traumáticas que nunca são totalmente superadas. Em todas as perdas, há uma interrogação sufocante sobre os porquês. Joni Eareckson Tada, tetraplégica e sobrevivente de cancro, responde:
“[Quais são os desígnios de Deus?] Que você e eu estejamos na melhor das posições, no melhor lugar, nas circunstâncias mais precisas em que Deus possa ser glorificado ao máximo.”[16]
“Quaisquer que sejam as cordas partidas em nossa vida, se nos concentrarmos, se aplicarmos o que sabemos, ainda podemos tocar lindas músicas com o que nos resta. De facto, será uma música que mais ninguém poderia tocar da mesma forma." [17]
Na Palavra de Deus, temos também a esperança que o Senhor caminhará connosco por este vale: “No sofrimento eu fui consolado, a Tua promessa me deu vida!” Salmos 119:50 (NTLH)

[1] http://www.citador.pt/poemas/dor-francisco-jose-lahmeyer-bugalho, visto a 13-03-17
[2] DOBSON, James, Quando Deus não Faz Sentido, p. 15
[3] WORDEN, J. William, Terapia do Luto, p. 23
[4] Ibid. p. 25
[5] Ibid. p. 27
[6] Ibid. p. 29
[7] MELO, Rita, Processo de Luto: o inevitável percurso face a inevitabilidade da morte, p. 17
[8] WORDEN, J. William, Terapia do Luto, p. 32
[9] WORDEN, J. William, Terapia do Luto, p. 26
[10] Ibid., p. 19
[11] Segundo Bromberg, as Fases do Luto são: (1) Entorpecimento, (2) Anseio e Protesto, (3) Desespero e (4) Recuperação e Restituição.
[12] Segundo Kubler-Ross as Fases do Luto são: (1) Negação e Isolamento, (2) Raiva, (3) Negociação, (4) Depressão e (5) Aceitação.
[13] WORDEN, J. William, Terapia do Luto, p. 22
[14] “Um exame das respostas comportamentais à perda que são manifestadas por espécies não-humanas, aves, mamíferos inferiores e primatas. sugere que essas respostas têm antigas raízes biológicas. Embora não estejam registradas em toda a sua extensão, as informações existentes mostram, contudo, que muitas (senão todas) as características descritas para seres humanos, ansiedade e protesto, desespero e desorganização, desligamento e reorganização também são a regra em muitas outras espécies.” (Bowlby, 1997, p. 77).
[15] WORDEN, J. William, Terapia do Luto, p. 2
[16] TADA, Joni Eareckson, Deus seu Maior Aliado nos Momentos de Dor, p. 6
[17] Ibid. p. 123

ATRAVESSANDO O DESERTO DA PERDA 1 - MORTE

Veja também a Parte 2 Parte 3

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